TJRN divulga decisão de consulta administrativa sobre Usucapião Extrajudicial

DECISÃO – CONSULTA ADMINISTRATIVA – PJECOR N. 0001257-49.2023.2.00.0820.

PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE
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  Processo n. 0001257-49.2023.2.00.0820
Classe: CONSULTA ADMINISTRATIVA (1680)
CONSULENTE: CAIÇARA DO RIO DO VENTO – OFÍCIO ÚNICO – CNS 13.105-2 – TJRN
CONSULTADO: CORREGEDOR GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE 

DECISÃO 

Trata-se de Consulta Administrativa formulada por Sydia Mara Fernandes de Souza Rosas, Titular do Ofício Único de Caiçara do Rio do Vento/RN, sobre Usucapião Extrajudicial, com os seguintes questionamentos: 

1ª) Em Tabelionato de Notas, para fins de lavratura de ata notarial para comprovar tempo de posse para usucapião extrajudicial, é requisito conter matrícula do imóvel usucapiendo na Ata Notarial?

2ª) Em Serventias de Registro de Imóveis, para deferimento da ata notarial para fins de usucapião extrajudicial, se esta não contiver a matrícula do imóvel usucapiendo, como proceder?

3ª) É possível, no Estado do Rio Grande do Norte, usucapir extrajudicialmente imóvel sem matrícula em Registro de Imóveis?

4ª) Negativa dos herdeiros em abrir o inventário para regularizar a transmissão de propriedade para o dono da posse, torna se cabível a realização da usucapião extrajudicial?

5ª) A existência de situação que envolve inventários sucessivos, que, por sua excessiva onerosidade, inviabilizam a transmissão do imóvel à pessoa que na atualidade tem a posse, nesse caso, torna-se cabível a realização da usucapião extrajudicial?

6ª) A inviabilidade de localização de herdeiros para abrir o inventário para regularizar a transmissão de propriedade para o dono da posse, torna-se cabível a realização da usucapião extrajudicial?

7ª) A incerteza sobre o óbito do titular tabular do imóvel usucapiendo e não localização do referido titular tabular ou de seus herdeiros, torna-se cabível a realização da usucapião extrajudicial?

8ª) Desta feita, havendo óbices quanto aos direitos hereditários que inviabilize a lavratura do inventário ou se não é viável localizar os herdeiros, questiona-se se ficará demonstrado o óbice ao procedimento de inventário e, portanto, há justificativa para se processar a usucapião extrajudicial?

É o relatório.

A Usucapião é uma forma originária de aquisição de propriedade prevista no ordenamento jurídico brasileiro que permite a obtenção de propriedade de um bem pelo transcurso de lapso temporal com posse mansa e pacífica, previsto no artigo 1.238 do Código Civil de 2002.

Importante destacar, de início, que, por força do disposto no artigo 236 da Constituição Federal (CF/88), a atividade extrajudicial brasileira apresenta-se como delegação do poder público, mesmo que exercida em caráter privado. Logo, submete-se, dentre outros normativos, aos princípios norteadores do Direito Público.  

A usucapião extrajudicial encontra base legal no artigo 216-A da Lei n. 6.015/73 (Lei de Registros Públicos – LRP), inserido pelo Código de Processo Civil de 2015; no Provimento CNJ n. 149/2023, que instituiu o Código de Normas – Foro Extrajudicial – da Corregedoria Nacional de Justiça; além do Provimento n. 156/2016, que instituiu o Código de Normas – Caderno Extrajudicial – desta Corregedoria Geral de Justiça, dentre outros atos normativos.

Tecidos tais esclarecimentos, passo a esmiuçar os questionamentos consultados.

Assegurada pelo artigo 384 do Código de Processo Civil (CPC), a ata notarial é o instrumento público por meio do qual o tabelião atesta fato com o qual teve contato, decorrendo da função tipicamente notarial de autenticar fatos, com força de prova pré-constituída.

Assim, acerca dos itens 1º e 2º da presente consulta, em se tratando de usucapião extrajudicial, o conteúdo da ata notarial é encontrado no inciso I, do artigo 401, do Provimento CNJ n. 149/2023, sendo usada para documentar a posse mansa e pacífica do imóvel pelo solicitante ao longo de um período determinado e a inexistência de ação possessória ou reivindicatória envolvendo o imóvel.

De igual modo, o artigo 276-A, I, da LRP:

Art. 216-A.  Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com: (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência)

I – ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e de seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias, aplicando-se o disposto no art. 384 da Lei no 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil; (Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017) (destaque nosso)

Por essa razão, não se vislumbra como requisito necessário, para fins de lavratura de Ata Notarial para comprovar tempo de posse da usucapião extrajudicial, a matrícula do imóvel usucapiendo. Inclusive, porque a ata notarial não tem valor para fins de confirmação ou estabelecimento de propriedade, servindo apenas para a instrução de requerimento extrajudicial de usucapião para processamento perante o registrador de imóveis (artigo 402, §3º, Provimento CNJ n. 149/2023).

Quanto ao 3º quesito, sendo a modalidade extrajudicial uma das espécies de usucapião, o artigo 400, caput, do Provimento CNJ n. 149/2023, prevê, no que diz respeito ao conteúdo do requerimento, a aplicação supletiva e subsidiária das normas processuais civis, como permitido pelo art. 15 do CPC.

Assim, é preciso que o requerimento seja formulado fazendo constar, no que couber, os mesmos requisitos de uma petição inicial, como forma de garantir o contraditório, a segurança jurídica no âmbito do Registro Imobiliário, além do amplo controle de legalidade pelo oficial registrador e pelo Juiz Corregedor.

Além disso, o citado artigo 400 do Provimento CNJ n. 149/2023, determina que constem do requerimento os seguintes requisitos específicos:

Art. 400. O requerimento de reconhecimento extrajudicial da usucapião atenderá, no que couber, aos requisitos da petição inicial, estabelecidos pelo art. 319 do Código de Processo Civil – CPC, bem como indicará:

I – a modalidade de usucapião requerida e sua base legal ou constitucional;

II – a origem e as características da posse, a existência de edificação, de benfeitoria ou de qualquer acessão no imóvel usucapiendo, com a referência às respectivas datas de ocorrência;

III – o nome e estado civil de todos os possuidores anteriores cujo tempo de posse foi somado ao do requerente para completar o período aquisitivo;

IV – o número da matrícula ou transcrição da área onde se encontra inserido o imóvel usucapiendo ou a informação de que não se encontra matriculado ou transcrito; (destaque nosso)

V – o valor atribuído ao imóvel usucapiendo.

Nesse diapasão, sendo a usucapião uma forma originária de aquisição de propriedade, destaca-se o §1º do artigo 176-A da LRP, in verbis:

Art. 176-A. O registro de aquisição originária ensejará a abertura de matrícula relativa ao imóvel adquirido, se não houver, ou quando: (Redação dada pela Lei nº 14.620, de 2023) (destaque nosso)

  • 1º  A matrícula será aberta com base em planta e memorial descritivo do imóvel utilizados na instrução do procedimento administrativo ou judicial que ensejou a aquisição.   

Dessa forma, quanto à indagação acerca da possibilidade de usucapir extrajudicialmente imóvel sem matrícula, a norma acima transcrita prevê expressamente a abertura de matrícula do imóvel, quando esta for inexistente.

Com efeito, aplica-se ao caso em questão o princípio da legalidade, normatizado pelo artigo 5º, II, da CF/88, segundo o qual os administrados somente poderão fazer, ou deixar de fazer, o que estiver expressamente previsto em Lei, sendo este o caso da abertura de matrícula para o imóvel que não a tenha, em caso de usucapião extrajudicial.

À vista disso, verifica-se que, em face da legislação pátria que rege o tema, é possível usucapir extrajudicialmente imóvel sem matrícula em Registro de Imóvel, desde que preenchidos os requisitos (gerais e específicos) que o procedimento estabelece para tanto.

No que se refere ao objeto do quarto questionamento da presente consulta, a anuência dos respectivos herdeiros é requisito necessário para que seja realizada a usucapião extrajudicial e aquiescência deles será eficaz se apresentada por escritura pública declaratória de herdeiros únicos, com nomeação de inventariante, não bastando notificação ou eventual consentimento, ainda que expresso.

É o que se extrai do artigo 409 do Provimento CNJ n. 149/2023, cuja redação identifica-se integralmente com o contido no artigo 462, parágrafo único, do Código de Normas – Caderno Extrajudicial – desta Corregedoria:

Parágrafo único. Na hipótese de algum titular de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes ser falecido, pelo princípio da saisine, poderão assinar a planta e memorial descritivo seus herdeiros legais, desde que apresentem uma escritura pública declaratória de únicos herdeiros com nomeação de inventariante.

A exigência normativa de nomeação de inventariante se justifica pela necessidade de se conhecer a exata situação sucessória e para haver confirmação de que o consentimento foi legitimamente prestado. Caso os herdeiros não manifestem sua anuência, deverão ser notificados pelo Oficial registrador. Para tanto, identificação e localização deles necessitam ser fornecidas pelo requerente no seu pedido inicial.

Portanto, a negativa dos herdeiros em abrir o inventário (4ª indagação) torna incabível a modalidade da usucapião extrajudicial. Nesse sentido:

APELAÇÃO CIVEL – USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA – MEEIRO – BEM A SER INVENTARIADO – IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO – RECURSO NÃO PROVIDO. 1. A usucapião não pode ser utilizada com a finalidade de suprimir o necessário inventário de bem deixado por herança pela companheira do apelante, sob pena de burlar o sistema registral e o fisco, além de direito de outro herdeiro. 2. Recurso não provido. TRIBUNAL de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível nº 1.0518.09.186979-3/001. Relator Des. Raimundo Messias Júnior.  Data de julgamento 04/12/2018. Data de publicação da súmula: 19/12/2018. Disponível em tjmg.jus.br. Acesso em 22 mar. 2019. (destaque nosso)

Nesse ponto, relevante esclarecer que a usucapião extrajudicial não substituiu as formas ordinárias de transferência de propriedade. Nos casos em que for possível a transferência de propriedade por inventário ou escritura pública, não será cabível a usucapião extrajudicial. Essa exigência tem a finalidade de evitar fraudes e outras formas de eximir as partes do pagamento dos tributos incidentes sobre eventual transferência regular da propriedade do imóvel, que não a usucapião extrajudicial.

No que concerne aos 5º e 8º questionamentos, a existência de situação que envolva inventários sucessivos pode ser uma barreira à transferência de propriedade por meios convencionais. Apenas a análise da situação concreta pode demonstrar se o óbice existente justifica o uso do procedimento extrajudicial da usucapião, considerando a complexidade do caso, as intenções das partes envolvidas e as implicações nas áreas dos terrenos a serem adquiridos.

Sobre o tema, o Provimento CNJ n. 149/2023, em seu artigo 410, §2º, determina o seguinte: 

  • 2º Em qualquer dos casos, deverá ser justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários, devendo registrador alertar o requerente e as testemunhas de que a prestação de declaração falsa na referida justificação configurará crime de falsidade, sujeito às penas da lei. (destaque nosso)

De fato, a usucapião pela via extrajudicial é uma situação excepcional e, nos casos em que for possível a realização dos inventários necessários, com as correspondentes exações tributárias, a fim de regularizar a propriedade imobiliária, não será cabível a utilização de tal procedimento administrativo.

Imperioso, ainda, destacar que a sucessividade de inventários por si só não é suficiente para demonstrar o óbice à correta escrituração das transações. Isso porque, inclusive, é lícita a cumulação de inventários para a partilha de heranças de pessoas diversa, como previsto no art. 672 do Código Civil Brasileiro.   

Outrossim, a Resolução CNJ n. 35/2007, que disciplina a lavratura dos atos notariais relacionados a inventário, partilha, separação consensual, divórcio consensual e extinção consensual de união estável por via administrativa, assegura em seu artigo 7º:

Art. 7º Para a obtenção da gratuidade pontuada nesta norma, basta a simples declaração dos interessados de que não possuem condições de arcar com os emolumentos, ainda que as partes estejam assistidas por advogado constituído (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020) 

Destarte, a situação que envolver inventários sucessivos e eventuais óbices quanto aos direitos hereditários que inviabilizem à lavratura do inventário não atendem aos requisitos da usucapião extrajudicial, sendo necessário ao interessado buscar a via judicial cabível.

No que se refere aos 6º e 7º questionamentos, tem-se que é necessária a concordância ou notificação dos titulares dos direitos registrados. Caso falecidos e na falta de anuência pela via adequada, seus herdeiros deverão ser notificados.

Para isso, os herdeiros precisam ser perfeitamente identificados e sua localização deve ser informada pelo requerente no pedido inicial dirigido ao registrador. Desconhecido o paradeiro dos herdeiros, devem ser esgotadas as providências possíveis para localização (incumbência exclusiva da parte interessada), inclusive com buscas nos Registros Civis.

Evidente que, se a parte demonstra ter realizado providências para identificação e localização dos titulares e herdeiros, alegando ter esgotado as pesquisas possíveis, pode requerer a notificação por edital (artigo 408 do Provimento CNJ 149/2023) sob sua responsabilidade e, caso isso não seja feito, o indeferimento do pedido deve ser fundamentado no apontamento das diligências ainda pendentes.

Por fim, caso seja infrutífera a tentativa e se não for encontrado novo endereço mesmo após a realização de pesquisas pelos sistemas disponíveis que não necessitem de intervenção judicial e, atendidos os requisitos fartamente explicitados nesta decisão, o procedimento de usucapião extrajudicial pode prosseguir.

Respondidos todos os questionamentos, esgotou-se o objeto da presente consulta.

Cientifique-se à Consulente. Publique-se.

Após, arquive-se. 

À Seção de Expediente para cumprimento.

Natal/RN, data registrada no sistema.

 

Desembargador GILSON BARBOSA
Corregedor-Geral de Justiça

Fonte: Diário Oficial de Justiça do TJRN, edição regular 219/2023

 

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