Jurisprudência mineira – Apelação cível – Ação reivindicatória – Direito real de usufruto instituído sobre a metade do bem – Posse exclusiva – Impossibilidade

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO REIVINDICATÓRIA – LOTE – DIREITO REAL DE USUFRUTO INSTITUÍDO SOBRE A METADE DO BEM – POSSE EXCLUSIVA DA USUFRUTUÁRIA – PESSOA IDOSA – DUAS EDIFICAÇÕES RESIDENCIAIS CONSTRUÍDAS NO IMÓVEL – OBRAS NÃO AVERBADAS NA MATRÍCULA – COTA PARTE DA USUFRUTUÁRIA NÃO DELIMITADA – RECUSA DE COMPARTILHAMENTO DO USO DO BEM – CIRCUNSTÂNCIAS QUE DENOTAM A IMPOSSIBILIDADE DE CONVÍVIO ENTRE AS PARTES – IMISSÃO NA POSSE DO TITULAR DO DOMÍNIO – INVIABILIDADE – QUESTÃO QUE SE RESOLVE EM PERDAS E DANOS – AUSÊNCIA DE PEDIDO VOLTADO PARA TAL FIM – INVIABILIDADE DE APRECIAÇÃO

– O usufruto constitui um direito real de gozo ou fruição, acarretando uma divisão igualitária dos atributos da propriedade.

– O usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos (art. 1.394), ao passo que o proprietário permanece com o domínio do bem, sem os atributos do uso e do gozo, vale dizer, mantém apenas a nua-propriedade.

– Se no lote sobre o qual recai usufruto foram erigidas duas construções de alvenaria destinadas à moradia, mas não foi lançada na matrícula do imóvel qualquer averbação nesse sentido, há de ser considerado o aludido bem na sua integralidade para fins de aferição do direito de usufruto lançado sobre a sua metade.

– Existindo posse exclusiva da usufrutuária que possui o seu direito lançado sobre a metade do imóvel, pessoa idosa que se recusa a compartilhar o seu uso com o titular do domínio pleno da outra parcela do imóvel e, uma vez identificada a inviabilidade de convívio entre as partes, denotando o impedimento concreto da utilização conjunta do imóvel, não há que falar em imissão da posse do titular do domínio, devendo o direito do proprietário, nessas circunstâncias, ser resolvido em perdas e danos equivalentes ao valor da locação, cujo exame resta inviabilizado em razão da inexistência de pedido autoral voltado para tal fim.

Apelação Cível nº 1.0000.22.053050-5/001 – Comarca de Belo Horizonte – Apelante: Laila Silveira de Carvalho – Apelada: Ilma Silveira de Carvalho.

 

ACÓRDÃO

Vistos, etc., acorda, em Turma, a 20ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em negar provimento ao recurso.

Belo Horizonte, 4 de outubro de 2023. – Fernando Lins – Relator

 

VOTO

Trata-se de recurso de apelação interposto por Laila Silveira de Carvalho, para a reforma da sentença consignada no evento n°. 44, a qual, no âmbito da ação reivindicatória ajuizada em face de Ilma Silveira de Carvalho, julgou a lide com o seguinte dispositivo:

“Ante o exposto, julgo improcedente o pedido formulado por Laila Silveira de Carvalho em face de Ilma Silveira de Carvalho, por entender que legítima a posse exercida pela ré sobre o imóvel.

Fica julgado o processo com resolução do mérito, nos termos do art. 487, I, do CPC.

Condeno a autora ao pagamento das custas processuais e em honorários advocatícios que arbitro em R$1.000,00 (mil reais), considerando o tempo de duração do processo, sua complexidade e os atos praticados, nos termos do art. 85, § 8º, do CPC, suspensa, porém, sua exigibilidade tendo em vista que foram concedidos à demandante os benefícios da assistência judiciária gratuita”.

Em suas razões, sustenta a apelante, em suma: que residiu durante alguns anos no imóvel sub judice juntamente com sua genitora, ora ré; que é incontroverso nos autos que, no lote em questão, que conta com 374m², foram erigidas duas casas de alvenaria; que por problemas financeiros possui interesse em residir na casa menor, ou seja, no barracão que existe no bem; que procurou a ré demonstrando interesse na fixação de sua residência no local, mas que não obteve autorização; que é proprietária de todo o imóvel, mas que, em relação à metade dele possui apenas a nua-propriedade, direitos estes recebidos por herança e devidamente registrados na matrícula do imóvel; que a ré possui o usufruto em relação a esta última metade do bem; que inexiste prova dos supostos abusos afirmados pela ré em defesa; que o d. sentenciante tomou como verdadeiros fatos que não foram comprovados em juízo; que, ao contrário do que consignado na sentença, nunca pretendeu ocupar a integralidade do imóvel, mas apenas a cota parte da qual possui direito; que sempre demonstrou o seu interesse em residir no barracão que possui entrada independente da casa da autora.

São esses, em suma, os fundamentos dos quais se utiliza para pugnar pelo provimento do recurso para que seja reformada a sentença e julgados procedentes os pedidos iniciais.

Contrarrazões apresentadas pela apelada, refutando as alegações da apelante e pugnando pelo desprovimento do recurso (evento n° 48).

Conclusos os autos à minha relatoria, vislumbrei que a apelada poderia encontrar-se em situação de vulnerabilidade, por se tratar de pessoa idosa que supostamente estaria exposta a abusos praticados por sua filha, ora autora, e por seu genro, razão pela qual determinei a remessa dos autos à Procuradoria Geral de Justiça (evento n° 49).

Parecer apresentado pela Procuradoria Geral de Justiça (evento n° 50) opinando pelo desprovimento do apelo e informando a remessa das cópias de peças extraídas destes autos ao “Centro de Apoio Operacional de Proteção ao Idoso e Portador de Deficiência” para a apuração dos fatos e eventual tomada de providências para responsabilização civil e criminal dos supostos ofensores.

Conclusos novamente os autos, solicitei informações quanto às providências adotadas pelo Ministério Público de Minas Gerais e que poderiam repercutir no presente julgamento (evento n° 51), vindos ao feito documentos demonstrando que a Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos solicitou o apoio da Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania (SMASAC) para fazer estudo social na casa da demandada, tendo este último órgão elaborado Relatório Técnico Assistencial no qual se identificou a atual situação vivenciada pela ré.

É o relatório.

Conheço do recurso, visto que presentes os respectivos pressupostos para a sua admissibilidade, dispensado o preparo por litigar a apelante sob o pálio da gratuidade judicial.

A matéria controvertida consiste na aferição do direto da demandante de ser imitida na posse de metade do imóvel localizado na Rua Amílcar Cabral, 1.281, Bairro Araguaia, na cidade de Belo Horizonte/MG, registrado no 7º Ofício de Registro de Imóveis sob o n° 20836 (evento n° 7), de sua propriedade e que está na posse da ré.

Infere-se da citada matrícula que a autora recebeu por herança a titularidade da integralidade do imóvel (lote), sendo que foi instituído em favor da ré o usufruto vitalício sobre metade do bem, vale dizer, à autora, adquirente herdeira, houve a metade da plena propriedade e metade da nua-propriedade.

Como cediço, o usufruto trata-se de um direito real de gozo ou fruição, acarretando uma divisão igualitária dos atributos da propriedade. O usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos, ao passo que o proprietário permanece com o domínio do bem, sem os atributos do uso e do gozo, vale dizer, mantém apenas a nua-propriedade. É a norma:

“Art. 1.394. O usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos.”

Consoante já assentado, a demandante busca na presente ação ver garantido o seu direito de exercer a posse sobre a metade do imóvel.

Em sede defensiva, a requerida esclarece que depois do falecimento de seu esposo, pai da autora, tentou residir juntamente com a filha no imóvel, mas que a convivência se tornou insuportável em razão dos abusos praticados pela demandante e seu companheiro.

Afirma tratar-se de pessoa idosa e cega, que necessita de cuidados permanentes para dar continuidade regular a sua vida, sendo portadora de diabetes mellitus, problemas de pressão alta, além de outras enfermidades decorrentes da idade avançada.

Alega que durante o convívio com a autora e o companheiro desta, estes se apropriaram indevidamente de elevada quantia que era de sua titularidade, cerca de R$40.000,00 (quarenta mil reais), mas que à época, por ser mãe da demandante, não a denunciou e o fato não foi apurado pelas autoridades policiais. Diz que atualmente vem sendo amparada e cuidada por seus irmãos, já que é impossível a convivência com sua única filha e seu companheiro, defendendo que, diante desse contexto, não seria possível a reintegração da posse da autora em qualquer parte do imóvel.

Assevera ser falsa a alegação de que a demandante não possui residência própria ou outro local para morar, porquanto esta é detentora de um apartamento financiado junto à Caixa Econômica Federal no Município de Sarzedo/MG, imóvel este que a ajudou a adquirir.

Pontua que pelas constantes brigas e a insegurança causada pela presença de sua própria filha e seu companheiro, somados aos abusos financeiros por estes praticados e comprovados pelos extratos bancários jungidos ao feito, que demonstram as transferências de elevados valores realizados diretamente da sua conta bancária para conta de titularidade do companheiro da demandante, resta inadequada qualquer determinação de retorno da autora ao bem.

Destaca que um de seus irmãos reside no barracão, pagando aluguel, sendo este quem a auxilia. Afirma que os aluguéis ajudam no provento de seu sustento, na compra de remédios necessários para garantir a sua saúde.

In casu, infere-se do caderno processual que a autora, instada em primeiro grau para especificar as provas que pretendia produzir, pugnou pelo julgamento antecipado da lide, ao passo que a ré pretendeu a produção de prova oral e depoimento pessoal da demandante, provas estas indeferidas na decisão de saneamento do processo (evento n° 32).

Observa-se, outrossim, que a Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania (SMASAC), por solicitação da Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos, incluiu a família da ré no Serviço de Proteção Básica do Município de Belo Horizonte, unidade Barreiro, com a realização de procedimentos de busca ativa da família, atendimento particularizado na regional e atendimento em domicílio, sendo ao final elaborado Relatório Técnico Assistencial, do qual constam as seguintes considerações:

“A senhora Ilma relatou que reside sozinha. Conta com o suporte do irmão Genildo para resolver questões administrativas de seu cotidiano. Possui boa convivência com a comunidade onde reside. Declarou que está com laços de convivência com a filha e o genro totalmente rompidos. […] A senhora Ilma é lúcida e bem orientada acerca de seus direitos. Compreende a situação vivenciada conseguindo elaborar críticas e apresentando poder de decisão acerca de suas escolhas. […] O contexto familiar apresentado atualmente não apresenta situação de desproteção social da senhora Ilma. A idosa apresentou com atendimento e empoderamento em relação à situação de violação que vivenciou. Declara que não pretende reatar laços com a filha. Senhora Ilma possui boa relação com irmão Genildo, com o qual conta a retaguarda na administração de sua vida pessoal. […] A senhora Ilma está bastante lúcida e consciente de suas decisões e de seus direitos”.

Conforme se verifica, a demandada, usufrutuária de metade do bem, manifesta a sua total discordância em compartilhá-lo com a autora. Demais disso, há evidências nos autos quanto ao efetivo descontentamento da ré em relação às atitudes da filha e do companheiro desta, sendo evidente a existência de conflito entre as partes.

Embora existam duas construções de alvenaria destinadas à moradia erigidas no lote, vê-se que não foi lançada na matrícula do imóvel qualquer averbação nesse sentido. Assim sendo, há de ser considerado o aludido bem na sua integralidade para fins de aferição do direito de usufruto da requerida.

Resta inconteste a partir das alegações das partes que a ré exerce por longo período a posse sobre a integralidade do imóvel, em razão do usufruto instituído em seu favor. Não se descura do fato de que a autora possui a propriedade plena de metade do bem, sendo o usufruto da autora instituído apenas em relação a sua outra metade.

Todavia, não há como se especificar a cota parte de que a ré pode se valer em razão do direito real de usufruto instituído em seu favor. Destarte, em que pese se identifique a possibilidade de eventual divisão fática do bem, esta não se deu, inexistindo identificação de qual área é ocupada pela demandada.

Assim sendo, a meu aviso, a expressa manifestação de discordância da demandada em compartilhar o imóvel, somadas às demais circunstâncias ora identificadas, denota a inviabilidade do uso de parcela do bem pela autora, ante a verificação de concreto impedimento para tanto.

Em hipóteses como as tais, embora não se reconheça o direto à fruição do bem, a jurisprudência tem assegurado à parte que tem obstada essa prerrogativa a cobrança de aluguéis em relação à outra parcela do imóvel que está na posse de quem não ostenta direito ao seu uso exclusivo.

Mutatis mutandis, nessa mesma linha já se pronunciou o STJ:

“Civil. Processual civil. Recurso especial. Ação de cobrança de aluguel. Possibilidade. Utilização exclusiva de um dos ex-cônjuges de imóvel pertencente aos filhos. Possibilidade. – Pretensão originária formulada no sentido de que o ex-cônjuge que ocupa imóvel doado aos filhos, pague o equivalente a 50% (cinquenta por cento) do valor de locação do imóvel, pelo usufruto, em caráter exclusivo, do bem pertencente à prole. – O exercício do direito real de usufruto de imóvel de filho, com base no Poder Familiar, compete aos pais de forma conjunta, conforme o disposto no art. 1.689, I, do CC-02. – A aplicação direta do regramento, contudo, apenas é possível na constância do relacionamento, pois, findo o casamento, ou a união estável, no mais das vezes, ocorre a separação física do casal, fato que torna inviável o exercício do usufruto de forma conjunta. – Nessa hipótese, é factível cobrança do equivalente à metade da locação do imóvel, pois a simples ocupação do bem por um dos ex-consortes representa impedimento de cunho concreto, ou mesmo psicológico, à utilização simultânea pelo outro usufrutuário. – Recurso especial não provido” (REsp n° 1098864/RN, Rel.ª Min.ª Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. em 4/9/2012, DJe de 21/9/2012)

 

O sobredito entendimento também encontra respaldo na jurisprudência desta Casa:

 

“Ação de cobrança de aluguel. Usufruto. Utilização exclusiva do imóvel por um dos usufrutuários. Comunhão dos frutos e despesas. – Se existe impedimento concreto para a utilização conjunta do bem por ambos os usufrutuários, alternativa não resta senão a imposição da obrigação de pagar aluguel por aquele que o utiliza com exclusividade” (TJMG – Apelação Cível 1.0024.09.745339-3/001, Rel.ª Des.ª Cláudia Maia, 14ª Câmara Cível, j. em 8/9/2016).

Entretanto, na hipótese sub examine não há pedido autoral voltado ao recebimento de aluguéis, sendo vedado qualquer pronunciamento nesse sentido, devendo a demandante, caso entenda pertinente, ajuizar nova demanda para tal fim.

Em face do exposto, nego provimento ao recurso.

Por conseguinte, forte no art. 85, §§ 2º e 11 do CPC, majoro em R$200 (duzentos reais) os honorários advocatícios devidos pela autora, que também deverá arcar com as custas recursais, suspensa a exigibilidade das cobranças por litigar sob o pálio da gratuidade judicial.

 

Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Fernando Caldeira Brant e Vicente de Oliveira Silva.

 

Súmula – NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.

Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG

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