Artigo – Timeshare e marketing: efeitos da compra e venda com caráter puramente emocional

De plano, é fulcral desnudar que, em conformidade com o artigo 1.358-C do Código Civil, a multipropriedade se afigura como “o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada”.

Abreviadamente, o adquirente de um imóvel edificado mediante o sistema sobredito usufrui do bem em determinada época do ano, sendo o período de gozo definido, a depender do caso, por intermédio de instrumento particular, bem como através escritura pública.

Inclusive, nas construções regulares, isto é, aquelas que outorgam propriedade ao comprador (e não apenas posse), o lapso temporal de cada condômino é adequadamente registrado mediante averbação na matrícula imobiliária.

Blaskesi leciona o assunto com precisão: “Uma vez registrado na matrícula-mãe, abrem-se matrículas individuais para cada fração de tempo desse novo direito real, onde consta, de forma específica, quando e como pode ser usado” [1].

Timeshare, marketing e litígios

Do cenário predito, surge, então, o epíteto timeshare, o qual pode ser traduzido como “tempo compartilhado”.

Por óbvio, o regime em evidência é costumeiramente aplicado em regiões turísticas, consoante Oliveira e Santos descortinam: “[…] são comuns em áreas turísticas como forma de segunda residência e têm a periodicidade como elemento essencial, pois o proprietário tem o direito exclusivo de usufruir determinado imóvel por um período predeterminado uma vez ao ano” [2].

Assentadas tais premissas, convém elucidar que o marketing envolvendo as transações alusivas ao modo de copropriedade aludido pode, eventualmente, desaguar em litígios processuais.

Isto porque, considerando que grande parcela dos consumidores desse tipo de mercadejo são turistas, como acima mencionado, em determinadas hipóteses a venda do imóvel advém com caráter instantâneo e puramente emocional.

Jusrisprudência e o direito ao arrependimento

O distinto desembargador Cezar Augusto Rodrigues Costa, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), perscrutando a temática nos autos da apelação nº 0274388-18.2019.8.19.0001, ilustrou com proficiência o contexto em pauta, demonstrando o modus operandi dos negociadores que empregam estratégias abusivas em face dos investidores:

“A aquisição se deu mediante venda emocional, usual prática de abordagem de turistas em momentos de lazer em que preposto da empresa vendedora promete um brinde ou vantagem, que pode ser um jantar, um passeio, diárias de hotéis, dentre tantos outros, sob a condição de os abordados assistirem palestras publicitárias do empreendimento imobiliário com unidades à venda. A partir de então, são encaminhados a determinado local, com reduzida disponibilidade de saída, onde permanecem tempo suficiente sendo constrangidos por agressivo marketing praticado sucessivamente por prepostos, que envolve insistência, teatralização e extrema pressão psicológica, ou seja, peculiares estratégias para tirar a estabilidade racional momentânea dos consumidores, levando-os a um estado de fragilidade, no qual acabam por assinar a compra e venda por mero impulso, embaraço e empolgação, sem que tenham informações adequadas do negócio jurídico celebrado” [3].

Eis a ementa do julgado:

“APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DO CONSUMIDOR. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL EM REGIME DE MULTIPROPRIEDADE. SISTEMA DE USO EM TIME SHARING. ARREPENDIMENTO DO CONSUMIDOR. MARKETING AGRESSIVO. VENDA EMOCIONAL. RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR CULPA DO VENDEDOR. DANO MORAL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. APELO DA RÉ. Resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel em regime de multipropriedade e sistema de uso em time sharing. A aquisição se deu mediante venda emocional, usual prática de abordagem de turistas em momentos de lazer em que preposto da empresa vendedora promete uma vantagem sob a condição de os abordados assistirem palestras publicitárias do empreendimento, onde permanecem tempo suficiente sendo constrangidos por agressivo marketing, comprando por empolgação. Direito ao arrependimento, com o desfazimento do negócio por culpa de vendedor, por ofensa aos artigos 30 e 31 do Código de Defesa do Consumidor. A restituição das parcelas pagas deve ocorrer integralmente. Tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1300418/SC, em recurso repetitivo. Enunciado 543 da súmula da mesma Corte. Quanto à restituição de condomínio e IPTU, previstos como encargo do comprador, levando em conta o prolongamento do acordo e a ausência de irresignação durante o período, evidencio a responsabilidade da promitente compradora pelo pagamento das despesas, motivo pelo qual a sentença deve ser reformada no sentido de improcedência do pedido. O simples inadimplemento contratual não enseja, por si só, o reconhecimento de dano extrapatrimonial, entretanto, reconheço como dano moral in re ipsa a angústia da consumidora no momento em que sofreu as estratégias de marketing agressivo, que culminaram na venda emocional. Razoável a compensação pela quantia de R$ 10.000,00 (dez mil reais) fixada no primeiro grau. CONHECIMENTO e PARCIAL PROVIMENTO do recurso.” [4]

Nesse sentido, é de bom alvitre destacar que a jurisprudência vem reconhecendo o famigerado “direito ao arrependimento” em situações que foram empregadas a publicidade ilusória e ostensiva junto a empreendimentos em multipropriedade.

Nessa lógica:

“Apelação Cível. Venda e Compra de Imóvel. Multipropriedade. Ação de rescisão contratual cumulada com devolução de valores e indenização fundada em dano moral. Sentença de parcial procedência. Rejeição limitada ao pleito indenizatório. Recurso da ré vendedora. Método agressivo de ‘marketing’ que permite o direito de arrependimento. Autor que foi abordado pela ré durante momento de lazer em hotel, acompanhado de seus familiares. Manifestação de vontade viciada. Arrependimento que se deu no mesmo dia da celebração do negócio. Restituição integral de todos os valores efetivamente desembolsados pelo autor, visto que há notícia de que os cheques foram sustados pelo emitente. Recurso negado, com observação” [5].

Em complemento:

“Apelação. Rescisão contratual. Contrato de compra e venda. Regime de multipropriedade. Violação ao direito de informação. Rescisão por culpa do vendedor. Restituição dos valores pagos. Taxa condominial. Dano moral excluído. Devolução de forma única. Juros de mora. Citação. Declara-se rescindido o contrato particular de promessa de compra e venda de unidade imobiliária, no regime de multipropriedade, quando evidenciado que sua celebração se deu mediante prática do “marketing agressivo” ou “venda emocional”, aproveitamento do entusiasmo do consumidor, violando o direito de informação e consentimento, por não garantir a autonomia real da vontade do consumidor, parte mais vulnerável da relação. Comprovado o inadimplemento contratual por parte da promitente vendedora, deve o consumidor ser restituído pelos valores despendidos. Considerando que o valor pago possui natureza de sinal, e considerando que a rescisão ocorreu por culpa da construtora, aplicável o disposto no artigo 418 do Código Civil, em que se estabelece a devolução do valor pago a esse título. Inexistindo nos autos que os apelados não usufruíram dos imóveis, pois estes não foram entregues, de modo a ser indevida a cobrança de taxas e tributos referentes às cotas condominiais. Nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o mero inadimplemento contratual não enseja condenação por danos morais. Nos casos de rescisão contratual por parte da construtora, é cabível a restituição dos valores pagos ao consumidor, o que deve ocorrer de forma integral e de uma única vez, sem possibilidade de parcelamento, conforme inteligência da Súmula 543 do STJ. No caso de ilícito contratual, os juros de mora são devidos a partir da citação” [6].

Trato é trato

Todavia, acentua-se que a mera alegação de arrependimento não é suficiente para nulificar a avença de compra e venda, ao passo que no ordenamento jurídico brasileiro vigora o brocardo pacta sunt servanda.

A expressão latina articula que “os pactos devem ser respeitados”, ou, em outras palavras, que “os acordos devem ser cumpridos”; sendo conhecido, também, como o “princípio da obrigatoriedade” ou “força obrigatória dos contratos”.

O preclaro Arnaldo Rizzardo sintetiza a obrigatoriedade contratual com maestria, in verbis: “É irredutível o acordo de vontades, portanto, os contratos devem ser cumpridos pela mesma razão que a lei deve ser obedecida” [7].

O jurista Santiago, trilhando a mesma linha de raciocínio, aduz que “tal princípio na sua concepção clássica, consagra o entendimento de que, uma vez obedecidos os requisitos legais para a existência do contrato, a avença se torna obrigatória entre as partes, que não se podem desligar da relação jurídica senão por outro pacto com esse objetivo” [8].

No ponto, frisa-se que a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) acresceu ao Código Civil (parágrafo único, artigo 421) que “nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”.

Exceção à regra

Por conseguinte, diante da segurança legal que envolve os tratados, é evidente que a arguição de suposta ocorrência de “venda emocional” deve sobrevir com provas contundentes, porquanto, como visto, a invalidação de um instrumento devidamente firmado se enquadra como uma exceção à regra (manutenção do contrato).

Assim, trazendo o entendimento refalado às causas que versam sobre os imóveis em timeshare, vê-se que, para obstar ulteriores interpelações extrajudiciais ou judiciais, o profissional responsável pela negociação deve expor minuciosamente as características desse modelo aquisitivo ao interessado, sobretudo por se tratar de modalidade aquiritiva diferente da habitual, onde o adquirente compra parcialmente a propriedade do imóvel e não a sua totalidade.

Aliás, o Código de Defesa do Consumidor, no seu artigo 31, prevê que toda oferta comercial precisa detalhar todas as particularidades do produto oferecido:

“Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.”

A propósito, uma das sanções aplicáveis quando for constatada a desobediência à norma cravejada é – exatamente – a rescisão contratual, a teor do artigo 35, inciso III, do mesmo Diploma:

“Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha: I – exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade; II – aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente; III – rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos.”

Como efeito, sendo consumado o desfazimento do trato, o outrora comprador terá o valor desembolsado na ocasião da compra restituído, nos moldes da legislação supradita.

 

Ademais, a devolução pecuniária se alicerça no enunciado sumular nº 543 do Superior Tribunal de Justiça, qual seja:

 

“Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.”

 

Sob outro enfoque, é imprescindível denotar que a comercialização dos bens deve ser empreendida por corretor de imóveis habilitado e com inscrição ativa no seu respectivo Conselho Regional de Corretores de Imóveis (Creci); visando, desse modo, a minoração de riscos atinentes a crimes, posto que muitos indivíduos se passam por consultores imobiliários para venderem imóveis sem permissão e, por vezes, para mais de uma pessoa.

 

Conclusão

Diante de todo o exposto, conclui-se que é crucial haver a harmonia entre o marketing contemporâneo e a ética negocial, com o propósito de trazer perspicuidade e lisura às transações imobiliárias.

 

Repisa-se: o arrependimento somente será acolhido com base em elementos probatórios sólidos, não bastando a simples denunciação de existência de propaganda fictícia.

 

Por fim, no intento de obstar adversidades, a análise documental das operações do mercado imobiliário deve ser promovida por especialista, para que nenhuma das partes seja posteriormente ultrajada.

 

 

 

REFERÊNCIAS:

 

[1] BLASKESI, Eliane. Multipropriedade ou Time-Sharing: Primeiras Impressões. Revista SÍNTESE Direito Imobiliário, ano IX, nº 49, Jan-Fev de 2019.

 

[2] SANTOS, Aline Cecília Alexandrina Bezerra dos; OLIVEIRA, Catarina de Almeida de. Multipropriedade Imobiliária e a Concretização da Função Social na Garantia do Acesso à Moradia de Lazer. Revista SÍNTESE Direito Imobiliário, ano VIII, nº 48, Nov-Dez de 2018.

 

[3] TJRJ. Apelação n. 0274388-18.2019.8.19.0001. 17ª Câmara Cível. Relator: Cezar Augusto Rodrigues Costa.

 

[4] TJ-RJ – APL: 02743881820198190001, Relator: Des(a). CEZAR AUGUSTO RODRIGUES COSTA, Data de Julgamento: 08/03/2022, DÉCIMA SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 11/03/2022.

 

[5] TJSP. AC: 10009515520168260506 SP 1000951-55.2016.8.26.0506, Relator: Maria de Lourdes Lopez Gil, Data de Julgamento: 20/05/2021, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 20/05/2021.

 

[6] TJRO – AC: 70391593820208220001 RO 7039159-38.2020.822.0001, Data de Julgamento: 25/11/2021.

 

[7] RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

 

[8] SANTIAGO, Mariana Ribeiro. O princípio da função social do contrato: princípios contratuais, contrato eletrônico, contrato coletivo, contrato-tipo, direito comparado, boa-fé. Curitiba: Juruá, 2005.

 

Fonte: ConJur

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