19/06/2023 – Arpen/SP – “Todos os jovens que se casam antes da maioridade se encontram em situação de violação de direitos”

A Arpen/SP entrevistou Bruna Barbieri Waquin, secretária da Comissão Nacional de Infância do IBDFAM, que explicou o contexto dessas relações e quais as consequências desses matrimônios

 

Dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) mostram que o estado de São Paulo possui média anual de 2 mil casamentos envolvendo menores de idade. O levantamento mostrou, ainda, que matrimônios entre homens maiores de idade e mulheres menores são maioria. Entre março de 2018 e março de 2023 foram realizados 10.240 casamentos nessas circunstâncias.

O recorte tem por objetivo analisar o cenário após a aprovação da Lei Federal nº 13.811 – sancionada em 12 de março de 2018 – que estabeleceu a idade mínima de 16 anos para o casamento, alterando, assim, a redação do artigo 1.520 do Código Civil que antes permitia, em caso de gravidez, o casamento de menores de 16 anos.

A Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo (Arpen/SP) entrevistou Bruna Barbieri Waquin, secretária da Comissão Nacional de Infância do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), que explicou o contexto dessas relações e quais as consequências desses matrimônios. 

Confira a entrevista completa:

Arpen/SP – Desde 2019, a legislação proíbe, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil. Na visão da senhora, qual a principal fundamentação para essa proibição?

Bruna Barbieri Waquim – A permissão de casamento para crianças e adolescentes só atendia, historicamente, a uma finalidade: manter a instituição do casamento como canal formal e solene de transmissão de patrimônio e regulação da descendência. Durante séculos, o casamento possuía uma finalidade patrimonializada, hierarquizada, sendo elemento de manutenção do status quo na sociedade, e só recentemente que o casamento foi associado a amor ou ao projeto compartilhado de criar filhos.

Na Roma antiga, por exemplo, era comum meninas se casarem aos 12 anos e os meninos aos 14 anos, com cônjuges escolhidos pelo patriarca da família, pois o casamento era a forma de consolidar alianças políticas, econômicas e militares. No Brasil colonial, os casamentos arranjados de moças de 16 anos com senhores de 60 era algo muito comum. Tudo isso nos mostra como obrigar jovens ao casamento não tinha nada a ver com seus sentimentos ou interesses, mas sim atender a interesses de sua família.

A grande revolução começa quando o mundo passa a discutir a Doutrina da Proteção Integral e direitos humanos ao público infantil. Somente quando passamos a discutir a condição jurídica de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, é que conseguimos superar as barreiras do formalismo e da hierarquia familiar em vários sentidos: um deles foi a barreira do pátrio poder (exclusivo dos homens), que cedeu lugar ao poder familiar (dividido entre pais e mães) e que hoje, cada vez mais, assume ares de responsabilidade parental, afastando a ideia de “poder”, “hierarquia”, “comando”.

A lei que altera o Código Civil e proíbe o casamento de menores de 16 anos de idade (Lei nº 13.811/2019) é uma importante conquista histórica para garantir às crianças e adolescentes o direito de serem pessoas em desenvolvimento, de estarem nesse estágio de peculiar desenvolvimento humano. Independe dos interesses das famílias, a lei obriga os genitores e responsáveis a permitirem o transcurso do prazo da infância e da adolescência sem que etapas sejam queimadas e os jovens sejam expostos a compromissos que sequer possuem maturidade emocional ou biológica para arcar.

O casamento é assunto para adultos, que, teoricamente, já possuem maturidade emocional, preparo biológico corporal e independência financeira para entrarem num compromisso em pé de igualdade e com a preservação da sua autonomia.

Arpen/SP – Passados quatro anos desde a proibição, quais os principais benefícios para a preservação da saúde física, mental e psíquica dos adolescentes menores de 16 anos a Lei 13.811/19 trouxe?

Bruna Barbieri Waquim – A Convenção sobre os Direitos da Criança prescreve que toda criança (entendida como pessoa em desenvolvimento entre zero a 18 anos incompletos) tem direito ao descanso e ao lazer, ao divertimento e às atividades recreativas próprias da idade. O direito ao brincar faz parte do processo de construção e elaboração da própria personalidade e crescimento, e é o primeiro direito violado pelo casamento precoce. Mas precisamos deixar claro que o casamento precoce está diretamente relacionado à vivência de violências em diversos graus e formas por essas crianças e adolescentes, algumas imediatas, e outras que serão colhidas com o passar do tempo – e a perda das oportunidades.

A Childhood Brasil (organização que atua pela proteção da primeira infância) possui vários estudos que mostram como a vivência de casamento precoce implica, especialmente para meninas, que sejam vítimas de VPI – Violência Íntima praticada por Parceiro, seja de cunho psicológico, físico ou sexual, como o estupro marital.

As meninas são especialmente vulneráveis diante das estatísticas que mostram que são elas as participantes mais frequentes de casamento precoces, do que meninos, e em mais tenra idade. Dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) revelam que, pelo menos, 7,5 milhões de meninas se casam todos os anos antes de atingirem os 18. O primeiro lugar no ranking mundial de casamentos de crianças e adolescentes é a Índia, seguido por Bangladesh, Nigéria e em 4º lugar, o Brasil.

Isso repercute em uma sucessão de violações de direitos, pois o casamento precoce aprisiona as meninas em uma vida de baixa escolaridade, ausência de preparo para o mercado de trabalho, problemas de saúde em decorrência de gestação e parto sem cuidados, gerando um círculo vicioso de pobreza e exclusão, entre tantas outras consequências.

Alguns exemplos: segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), as complicações na gravidez e no parto são a principal causa de morte em meninas de 15 a 19 anos, e 90% das taxas de gravidez na adolescência são em meninas casadas. O Banco Mundial aponta que 30% da evasão escolar feminina no ensino secundário ao redor do mundo ocorre por conta do casamento infantil.

Arpen/SP – De um modo geral, qual o perfil desses jovens que se casam antes de completarem a maioridade?

Bruna Barbieri Waquim – Todos os jovens que se casam antes da maioridade, são jovens que se encontram em situação de violação de direitos.

Ou porque são obrigados pela família a se casar, por venda ou acordo; ou porque são alvo da negligência dos genitores, vendo no casamento precoce uma fuga em busca de atenção e afeto; ou porque se casam como forma de tentar escapar da miséria (caso de muitas meninas nos rincões dos interiores do Brasil afora); ou porque queimaram etapas na sua formação sexual, e em vez de desenvolverem naturalmente sua sexualidade, foram sexualizados e iniciaram relacionamentos sexuais muito cedo.

Dados da Instituição “Girls Not Brides” revelam que meninas de famílias com menor condição econômica têm chances três vezes maiores de casar antes dos 18 anos do que meninas de famílias com maior condição econômica.

O estudo “Tirando o véu”, da PLAN Internacional, revela que as principais motivações para casamentos e uniões forçadas em idade precoce são, por ordem de prevalência: gravidez não planejada; amor e desejo de constituir família; vivência da sexualidade (perda da virgindade); necessidade de saída de lares conflituosos; desejo pela maternidade; proteção contra violência e sanção da comunidade (julgamento moral). Isso mostra que, muitas vezes, o matrimônio é pautado primariamente pelas necessidades e/ou pela falta de oportunidades do que pelo desejo de uma união.

Arpen/SP – De acordo com a ONU, o casamento infantil é caracterizado pela celebração da união em que pelo menos uma dar partes tem menos de 18 anos. Sendo assim, a autorização existente para adolescentes entre 16 e 17 anos completos não configura uma violação do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA)? Como a senhora analisa essa questão?

Bruna Barbieri Waquim – Eu entendo que a Lei deveria ter sido ainda mais corajosa e proibido qualquer casamento para menores de 18 anos. Mesmo o adolescente que é emancipado aos 16 anos, não deixa de ser sujeito de direitos da Proteção Integral. Isso significa que dispor de maior ou menor capacidade civil, não retira o adolescente da Proteção Especial garantida a nível de direitos humanos por sua condição de pessoa em fase de desenvolvimento biopsicossocial.

No Brasil, ainda confundimos capacidade civil com a titularidade de direitos existenciais. Crianças e adolescentes, ainda que não possam exercer com plenitude a personalidade jurídica e a titularização, por si só, de direitos e obrigações na esfera civil, continuam sendo credores de prestações subjetivas devidas pela família, pelo Estado e pela sociedade, no que se inclui a dignidade, a liberdade, o lazer, a prioridade absoluta e o respeito ao seu superior interesse.

Arpen/SP – Visando a autonomia desses futuros adultos, leis como essa também diminuem a evasão escolar principalmente das adolescentes? Quais outros avanços podem ser realizados pela legislação brasileira neste aspecto?

Bruna Barbieri Waquim – Nenhuma lei sozinha pode enfrentar e reverter questões culturais consolidadas. Precisamos aliar a legislação existente à capacitação dos atores do Sistema da Justiça para reconhecer violações de direitos e atuar de forma célere e eficaz, bem como precisamos da existência de políticas públicas de educação dos pais e da sociedade, pois de nada adianta existir a Lei se a sociedade não a respeita. Os filhos não serão dados em casamento, para cumprir a lei, mas continuarão formando uniões estáveis, e as violações de direitos continuarão ocorrendo.

A evasão escolar pode ser um indicador precioso para que essa escola acione o Conselho Tutelar, a Promotoria de Infância, visando levar os casos isolados ao conhecimento do Sistema de Proteção, mas o problema requer uma visão muito mais ampla.

Precisamos aliar os Poderes para a consolidação da igualdade de gênero, pois existe um grande atravessamento de violência de gênero que arrasta tantas meninas a um círculo vicioso de gravidez precoce, violência doméstica e pobreza.

Outra questão importante é permitir que meninos e meninas recebam uma educação sexual de qualidade, para serem capazes de reconhecer abusos, lidarem com sua sexualidade de forma saudável e responsável e não queimarem etapas diante de uma sociedade que cada vez mais hipersexualiza a juventude.

Fonte: Assessoria de Comunicação – Arpen/SP

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