Em apenas quatro horas de trabalho no cartório civil da Vitória, o escrevente Quelber Conceição registrou, neste domingo (21), 15 falecimentos, todos por covid-19. “Quando eu cheguei , às 8h, havia oito famílias esperando”, contou. O cenário é reflexo da quantidade de pessoas que já morreram na Bahia, agora em março, por conta da doença. O mês é o recordista de óbitos de toda a pandemia. Nesse período, com hospitais superlotados e disputa por leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para os pacientes graves do coronavírus, cartórios baianos já chegaram a executar 123 registros de óbito em um único dia de trabalho, diz a Central Nacional de Informações do Registro Civil (CNR).
O pico de 123 registros de mortes por covid-19 na Bahia ocorreu no dia 8. Mas, esse dado ainda pode aumentar, já que a plataforma da CNR leva até 15 dias para atualizar todos os registros feitos no estado. Em Salvador, até agora, a média diária é de 50 averbações de óbitos pela doença nas repartições da capital. O pico foi no dia 12, o recorde municipal da pandemia.
Nos horários de maior fluxo, principalmente na parte da manhã, e nos finais de semana, quando apenas oito cartórios funcionam na capital em esquema de plantão para registro de nascimentos e óbitos, das 8h às 16h, os clientes enfrentam filas.
Espera
Sheila Matos, que chegou às 7h da manhã no cartório da Vitória para registrar a morte da sogra Maria Angélica Matos, 71 anos, enfrentou fila. Maria Angélica passou oito dias internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Salvador.
“Não deu tempo de ela ser vacinada. Tinha comorbidades, histórico de problema pulmonar, diabetes e hipertensão”, contou Sheila.
Antes de Maria Angélica ir para o hospital, ficou internada por seis dias no gripário de São Cristóvão, período em que a família alega não ter tido notícias de dona Maria.
“Ficamos desesperados! Parece que a gente botou um animal lá dentro, não uma pessoa. Eu ameacei fazer barraco, chamar a imprensa, avisar o que estava ocorrendo para, depois de seis dias, a gente descobrir que ela estava na sala vermelha, intubada e esperando transferência. Por tudo isso que passamos, fica a sensação de revolta”.
Recorde no plantão
Em Brotas, das 8h às 13h deste domingo, 21, a escrevente Liliane Santos fez 10 registros de óbitos. No sábado, foram 15, durante todo o dia. “Quando eu cheguei hoje (ontem) também tinha fila aqui na frente, o que não é comum. A maioria dos óbitos que registrei foi por covid-19. Nunca peguei tantos como agora”, disse.
A família do empresário Roberto Santana de Souza foi uma das que resolveu chegar cedo ao cartório. Ele estava internado desde o dia 24 de fevereiro, na UTI do Hospital Tereza de Lisieux, próximo à repartição em Brotas. Com 42 anos, fazia musculação, Jiu Jitsu e tinha uma saúde considera perfeita.
“Um homem bonito, jovem, que sempre se cuidava, se alimentava bem, respeitava as normas de segurança, só andava com máscara, álcool… até hoje não sabemos como ele pegou esse vírus”, disse o irmão de Roberto, que preferiu não se identificar.
Após a averbação do óbito, o irmão também foi o responsável por fazer o reconhecimento do corpo. “Eu já trabalhei no Tereza de Lisieux como segurança e dei muito suporte às famílias que precisavam passar por essa situação. Hoje sou eu que vou precisar de apoio. É muito duro passar por isso. A doença deixa sequelas não só em quem pega, mas também em quem perde os familiares. As pessoas precisam tomar consciência do problema que enfrentamos”, desabafou.
Por volta das 13h, quando o movimento nos cartórios estava mais vazio, Vinicius Carvalho, dono da Funerária Líder, esteve em Brotas para fazer a averbação de um óbito, por procuração, para um cliente da empresa.
A vítima era uma mulher de 68 anos. “A família também estava contaminada, provavelmente, e não poderia vir. Na funerária, os atendimentos vêm aumento agora, mas não a ponto de colapsar”, contou o agente funerário.
Famílias em luto
No cartório de Nazaré, por volta das 10h, o movimento era intenso com três famílias aguardando a vez para ser atendida. Quem teve que ir ao local foi a enfermeira Gabriela Neri Bitencourt, 40, fazer o registro da morte de sua avó, Nelia Souza, 84, por causa da covid. Dona Nelia já tinha tomado a primeira dose da vacina, mas a imunidade contra a infecção covid-19 só ocorre 28 dias depois d a imunização com a segunda dose.
“Ela contraiu o vírus de uma forma que a gente não sabe. Foi tudo muito rápido. Ficou apenas um dia internada no Hospital Municipal de Salvador. Graças a Deus, não sofreu tanto. Ela já tinha problema cardiológico e teve uma parada”, descreveu.
Gabriela também acredita que esse aumento de mortes é fruto da falta de adesão da população às medidas de isolamento social e, como enfermeira, reclama da sobrecarga dos profissionais da saúde.
“O vírus está aí e as pessoas estão sendo negligentes. Tem como se prevenir, evitar a transmissão, mas a maioria dos jovens está evitando isso e aí acontece o que ocorreu na nossa família, o óbito. O cenário é desolador, os profissionais de saúde estão exaustos e empatia é o que mais precisamos agora”, disse a enfermeira.
Obrigatoriedade
O registro de óbito é um documento gratuito e obrigatório que torna o falecimento de uma pessoa público perante o Estado e terceiros. Todos os falecimentos precisam ser comunicados. Já a certidão de óbito é usada pela família para solicitar benefícios, como pensão por morte e receber seguro de vida, por exemplo.
Em Salvador, o plantão de óbitos nos finais de semana e nos feriados funciona em 8 Cartórios de Registro Civil localizados em: Nazaré e Santana, Santo Antônio Além do Carmo, Brotas, Pirajá, Vitória, Penha e Valéria.
Fonte: Correio