04/09/2021 – Conjur – Adequação do artigo 479 do CPP ao avanço tecnológico e seus reflexos no júri

Por Denis Sampaio, Rodrigo Faucz Pereira e Silva e Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

 

Basta olharmos para o lado, dentro de nossa casa, no trajeto ou no ambiente de trabalho (escritórios, gabinetes, fóruns ou home office), que nos deparamos com vasta e diversificada tecnologia. Os equipamentos estão cada vez menores e as informações mais rápidas. O avanço dessas novas tecnologias cria uma nova forma de ver o mundo e os fenômenos em geral: com mais velocidade e fidedignidade, eis que a realidade está à nossa frente, ainda que observada em 3D ou 4D. A realidade alçada ao nível virtual já é uma prática corrente, necessária e irrenunciável.

 

A sociedade pós-moderna denota-se tecnológica, ou, como já se aponta, uma nova sociedade da informação. O Direito, como não poderia ser diferente, está inserido nesta realidade. O avanço da tecnologia induz a uma necessária modernização na seara jurídica, com aproximação desse novo modelo e linguagem social, justamente para que o discurso e a prática não restem defasadas.

 

É nesse sentido que, não obstante nos reconhecermos inseridos nessa nova dialética, impõe-se sempre a urgência de refletirmos sobre a necessidade e adequação entre as interferências da nova sociedade de informação e as tradicionais formas de vivificação da dinâmica processual (e especificamente para esta coluna, nos processos dos crimes dolosos contra a vida).

 

Atualmente, a grande maioria dos processos já se virtualizou; muitas audiências são realizadas por intermédio de sistemas informáticos; os plenários dos júris não mais são pautados com inúmeros volumes de autos, mas, sim, computadores armazenando todas as informações e provas; a prova oral não é mais transcrita, mas gravada; as provas são apresentadas em modelos inovadores; diversas alterações ocorrem diuturnamente para a gestão da dinâmica processual. Essa é a nova realidade dos processos e a maior dificuldade dos operadores de Direito reside em se adequar a essa estrutura.

 

O foco da reflexão segue nesse sentido: até que ponto as inovações tecnológicas perante nossa sociedade da informação influenciam na dinâmica da relação comunicacional no Tribunal do Júri? Há concorrência entre a efetividade dos direitos e a nova relação tecnológica? A tradicional observância de trâmite, princípios e as garantias processuais podem sofrer abalos? Certo é que o fenômeno da nova criminalidade conjugada com a sociedade de informação, demandará uma mudança do paradigma moderno do processo penal, revitalizando a dicotomia entre o processo penal como um sistema de sólida garantia do indivíduo versus a ampliação da sua intrumentalização.

 

Essas são algumas indagações que não poderão ser respondidas sem que trafeguemos por alguns outros atuais e importantes temas. Por isso, a influência do tempo no processo, a consequente necessidade da imediatividade dos atos e novas formas de produção de provas, com ênfase na colheita e exposição das informações, denotam-se importantes focos de análise para que o devido processo justo não seja violado.

 

Dando continuidade à reflexão sobre a regra do artigo 479 do CPP e o adiamento dos julgamentos perante o Tribunal do Júri, concluímos na semana passada que na vigência do atual modelo: 1) o prazo regressivo previsto no artigo 479 do Código de Processo Penal (CPP) deve observar o intervalo mínimo de três dias úteis inteiros entre a juntada e a data designada para a sessão de julgamento; 2) uma vez realizada a juntada tempestiva, nada impede que a comunicação à parte adversa seja realizada a menos de três dias da sessão de julgamento; 3) para os casos de grande complexidade, quando o material carreado aos autos seja relevante, pertinente e a sua análise não seja possível de ser operada em curto espaço de tempo [1], deverá o magistrado adiar o julgamento para data próxima e razoável ao estudo do que restou carreado aos autos.

 

Contudo, vamos além. Importante questão surge quanto à virtualização dos processos instituída pela Lei 11.419/06 e, em especial, o meio eletrônico de armazenamento ou tráfego de documentos e arquivos digitais (artigo 1º, §2º, I) e o efetivo acesso pelas partes de todo o seu conteúdo. A referência dar-se-á pela possibilidade de juntada de arquivos digitais que remontam terabytes de informações neles contidas. Por isso, prevê o artigo 11, §5º, da aludida lei que “os documentos cuja digitalização seja tecnicamente inviável devido ao grande volume ou por motivo de ilegibilidade deverão ser apresentados ao cartório ou secretaria no prazo de 10 dias contados do envio de petição eletrônica comunicando o fato, os quais serão devolvidos à parte após o trânsito em julgado”. Face esse quadro, pergunta-se: quando esses documentos são armazenados em HD externo e não constante no processo informatizado, devem ser considerados como “inseridos” nos autos (virtuais) do processo? E mais, é possível a juntada apenas desse dispositivo sem que haja uma clara e minuciosa exposição das informações nele contidas?

 

Essas questões se mostram pertinentes, especialmente no Tribunal do Júri, na medida em que além das partes possuírem a necessidade de amplo acesso, também é fundamental a possibilidade da refutação, em plenário, do material apresentado.

 

Sabemos que muitas vezes as partes possuem acesso ao material por longo período antes da sessão. Às vezes, a acusação possui as informações de outras investigações e processos. Mesmo assim opta-se pela juntada — em cartório — de todo o conteúdo apenas respeitando o tríduo legal estabelecido pelo artigo 479 do CPP. Acessar um extenso material em curto período de tempo é algo que apenas com inteligência artificial se tornaria factível. Mas o ponto fulcral não é apenas o acesso em cartório pela parte contrária, mas, sim, a viabilidade de efetivo conhecimento e análise de todo o material contido.

 

Considerando as atuais normas sobre a informatização dos processos, a necessidade de assegurar a cadeia de custódia de documentos digitais no Poder Judiciário (na forma do artigo 158-A do CPP), bem como notícias de diversos casos em que são juntadas informações e provas em HD externo, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução 408 de 18 de agosto de 2021 que “dispõe sobre o recebimento, o armazenamento e o acesso a documentos digitais relativos a autos de processos administrativos e judiciais”. Para o presente artigo, importante observar o previsto no artigo 3º da referida resolução:

 

“Artigo 3°  O documento ou a mídia digital que não puderem ser anexados ao sistema de processo eletrônico do tribunal ou ao repositório arquivístico digital confiável  RDC-Arq referido no artigo 2° , qualquer que seja o motivo, deverão ser relacionados em certidão padronizada pelo tribunal.

  • 1°. A certidão mencionada no caput deste artigo conterá:
  1. a) descrição pormenorizada, acompanhada da justificativa acerca da impossibilidade de o arquivo ser anexado ou armazenado de outra forma;
    b) mídia ou dispositivo empregado para armazenamento;
    c) local específico em que se encontra mantida a mídia ou dispositivo;
    d) data, nome, matrícula e assinatura do servidor responsável pela guarda e emissor da certidão”.

 

Ainda, o prazo para os atos processuais somente deverá ter seu início com o verdadeiro acesso da outra parte e não apenas com a intimação da mesma, como reforça o artigo 3º, §3º, da referida resolução:

 

“§3°. Os juízes deverão assegurar que os prazos processuais em processos físicos ou eletrônicos que dependam do acesso de documentos ou arquivos digitais não acessíveis em caráter contínuo somente tenham início depois da disponibilização de acesso ou obtenção de cópia à parte”.

 

A leitura da alínea “a” indica a responsabilidade do cartório em descrever de forma pormenorizada todas as informações ali constantes (o que, dependendo do volume de arquivos, poderá ser impossível). O ideal seria que quem fizesse a juntada também registrasse detalhadamente o conteúdo dos arquivos, no intuito de que não haja surpresa para a outra parte.

 

Imaginemos o caso da juntada de notícias descontextualizadas em que não haveria referência direta à discussão penal, mas no meio de tantos terabytes, uma pequena, porém, sensível informação à questão a ser debatida em plenário.  

 

Se a parte responsável pela juntada conhece todo o conteúdo do material, é seu dever informar a outra parte o que pode ser encontrado (e o que será utilizado), justamente para esta aferir a conveniência de maior enfrentamento da matéria através da argumentação sobre as provas produzidas, para verificar sua fidedignidade ou mesmo para decidir sobre a necessidade de produção de contra provas. Aliás, trata-se de respeito ao princípio da ética processual, paridade de armas e, em última análise, de garantir o fair trial.

 

Perceba-se que o foco da questão está justamente na não surpresa! Todo atuar estratégico se mostra presente e, em alguns casos, necessário. O que não comporta no devido processo legal é a estratégia caracterizada por má-fé por qualquer das partes envolvida no debate judicial penal.

 

O tema se torna mais sensível quando ligado ao Tribunal do Júri, pois a oralidade e imediatividade é uma realidade. Todos os principais temas probatórios e argumentativos são realizados em plenário, perante os jurados. Não há, portanto, espaço para que qualquer das partes se veja surpreendida por informação relevante não “descoberta” pela enorme quantidade de bytes juntados externamente ao processo virtual.

 

Nessa linha, a afirmativa de que o direito probatório se exaure nas garantias formais da isonomia das partes, na possibilidade de informação e reação frente aos atos processuais, na vedação da prova ilícita, entre outros, não traduzem o exaurimento da força constitucional do direito à prova. A salvaguarda do direito à prova deve se caracterizar em seu aspecto positivo, isto é, o reconhecimento de que a atividade das partes, especialmente da defesa, na postulação e produção da prova não se esgota apenas à refutação das pretensões acusatórias, mas, sim, assegurado sobre o contexto da prova argumentada (e não da argumentação sobre os elementos de prova), e na possibilidade de refutação da pretensão acusatória através de um agir ativo.

 

Logo, a plenitude de defesa como pilar do Tribunal do Júri precisa ser caracterizada pela possibilidade de se conhecer verdadeiramente todo o material que será apresentado ao julgador, especialmente ao conselho de sentença, bem como possuir a possibilidade de refutá-lo, seja através de argumentos sobre a prova, suas informações e a aferição da sua credibilidade, seja pela oportunidade temporal dos meios necessários à preparação de sua defesa (artigo 8º, nº 2, “c”, da CADH). Esse último ponto reforça o direito à prova e, efetivamente, a oportunidade do acusado de se defender provando, com indicação de informações que afastem o grau de credibilidade das provas produzidas ou mesmo expressem hipóteses alternativas àquelas apresentadas pela acusação.

 

Consequentemente, a defesa do modelo de processo justo não teria sentido nem conteúdo se não fosse reforçado por um efetivo contraditório e a possibilidade de regras específicas que viabilizem a formação do conhecimento em juízo, a não surpresa e o direito constitucional à prova.

 

[1] STF, 2ª. Turma, Inq. 3998 AgR, relator ministro Edson Fachin, j. 08/08/2017.

 

Fonte: Conjur

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